Introdução
À esquerda: cena do filme Moonlight(2016), dirigido por Barry Jenkins. Detalhe.
À direita: René Magritte, O Vestido de Noite (1954), Coleção Peggy Guggenheim, Veneza, Itália. Detalhe.
Em 1911, o teórico italiano Ricciotto Canudo definiu o cinema como "a sétima arte", destacando sua capacidade de unir todas as formas de expressão artística em um meio dinâmico e visualmente poderoso. Desde então, o cinema não apenas evoluiu como linguagem, mas também buscou inspiração em outras artes, como a literatura, a escultura e, especialmente, a pintura. A relação entre cinema e pintura vai além da estética: muitos cineastas renomados reinterpretaram obras de artistas clássicos para criar cenas icônicas que vão além da tela. Hoje a contempo vai explorar como cenas inesquecíveis do cinema foram inspiradas por obras famosas da história da arte, revelando como essas duas formas de expressão se entrelaçam em um diálogo visual fascinante.
René Magritte: Mestre do Surrealismo no Cinema
René Magritte, um dos expoentes mais influentes do surrealismo, é também um dos artistas preferidos pelos cineastas. Sua obra explora mundos onde a lógica se dissolve, criando cenários oníricos, paradoxais e desconcertantes. Em suas pinturas, como em um sonho, personagens sem rosto e situações impossíveis se desdobram, levando o espectador a questionar a própria realidade. Magritte, no entanto, não buscava fugir do mundo real, mas desconstruí-lo, expondo seus mistérios e ambiguidades. Essa subversão da realidade encontra eco em muitos filmes que flertam com o realismo mágico e com a manipulação do espaço e do tempo.
O Exorcista— O Império das Luzes
René Magritte, O Império das Luzes, 1953-54, Coleção Peggy Guggenheim, Veneza, Itália.
Um dos exemplos mais icônicos do uso da obra de Magritte no cinema pode ser visto em O Exorcista (1973), de William Friedkin. A chegada do padre Lankester Merrin à casa onde ocorrerá o exorcismo é uma cena crucial. A imagem do sacerdote parado em frente a um poste de luz é quase uma reprodução direta da pintura O Império das Luzes (1954), de Magritte. A obra é um verdadeiro oxímoro visual, onde luz e escuridão coexistem: uma rua noturna iluminada por um único poste e a janela de uma casa, sob um céu claro de dia. Esse contraste cria uma atmosfera de tensão e estranheza, semelhante ao momento decisivo no filme, onde o sobrenatural e o real se fundem.
Cena do filme O Exorcista, 1973, dirigido por William Friedkin.
Moonlight— O Vestido de Noite
René Magritte, O Vestido de Noite, 1954, Coleção Peggy Guggenheim, Veneza, Itália.
Cena do filme Moonlight, 2016, dirigido por Barry Jenkins.
Em Moonlight (2016), de Barry Jenkins, a jornada emocional de Chiron é marcada por cenas de contemplação silenciosa. Em um desses momentos, Chiron é mostrado de costas, olhando para o mar sob a luz da lua. Essa imagem evoca a pintura O Vestido de Noite (1954), de Magritte, em que uma mulher misteriosa também observa o oceano, envolta por uma sensação de mistério e introspecção. Embora os contextos sejam diferentes, ambos os quadros transmitem uma sensação de paz melancólica, onde o personagem parece buscar refúgio no infinito do horizonte.
O Show de Truman — Arquitetura ao Luar
René Magritte, Architecture in the Moonlight, 1956, coleção particular.
Cena do filme The Truman Show, 1998, dirigido por Peter Weir.
No clássico O Show de Truman (1998), de Peter Weir, a vida de Truman Burbank é uma construção artificial cuidadosamente orquestrada, onde ele é monitorado sem saber. A famosa cena em que Truman sobe uma escada em direção ao "fim" de seu mundo lembra a obra Arquitetura ao Luar (1956), de Magritte, que retrata escadas que se dissolvem em horizontes inexplorados. Assim como na pintura, Truman se depara com o desconhecido, simbolizando a escolha entre a segurança de uma realidade fabricada e a liberdade de um mundo autêntico, mas incerto. A atmosfera surreal do filme, com seus cenários estilizados, ecoa as composições de Magritte e de Giorgio de Chirico, cujas paisagens vazias e silenciosas transmitem a mesma sensação de estranheza.
Trainspotting — Os Mistérios do Horizonte
Acima: Cena do filme Trainspotting, 1996, dirigido por Danny Boyle.
Abaixo: René Magritte, Os Mistérios do Horizonte, 1955, coleção privada.
Magritte frequentemente explorava a despersonalização do indivíduo, como exemplificado em Os Mistérios do Horizonte (1955), onde figuras de chapéu coco são retratadas de costas, sempre distantes e enigmáticas. Em Trainspotting (1996), de Danny Boyle, essa ideia é capturada na cena em que Mark Renton, o protagonista, encara sua própria reflexão dividida em três espelhos. Ele está diante de um passaporte, refletindo sobre as diferentes vidas que pode escolher seguir. Assim como na obra de Magritte, onde figuras duplicadas desafiam a noção de identidade e individualidade, a cena de Trainspotting questiona as escolhas e a fragmentação do "eu" em um mundo de possibilidades.
Você também pode encontrar referências às obras de Magritte nos filmes Maléna, de Giuseppe Tornatore, Thomas Crown – A Arte do Crime, de Norman Jewison, e na série Twin Peaks, de David Lynch. Vale à pena procurar por elas.
2 - Edward Hopper: Solidão em Cena
Edward Hopper, um dos grandes nomes do realismo americano, capturou a essência da vida nos Estados Unidos de uma maneira singular. Suas obras, marcadas pelo uso de luz fria, formas geométricas precisas e personagens solitários, revelam um mundo introspectivo e desolado, repleto de silêncios que dizem muito sobre a condição humana. Suas obras transmitem uma sensação de angústia, talvez porque as pessoas e os edifícios retratados parecem quase falsos, como manequins. Não à toa, podemos encontrar referências às pinturas de Hopper em grandes filmes de terror e suspense.
Psicose — Casa ao Lado da Ferrovia
Edward Hopper, Casa ao Lado da Ferrovia, 1925, Museu de Arte Moderna (MoMA), Nova York, EUA.
A Casa ao Lado da Ferrovia (1925) de Hopper retrata um edifício vitoriano, situado em uma paisagem desolada ao lado de uma ferrovia, um símbolo da modernidade. Além disso, não há absolutamente nada por perto, sem vegetação, pessoas, ou qualquer outro sinal de vida. Trinta e cinco anos depois, Hitchcock se inspirou nesta pintura e a recriou como a casa de Norman Bates (o personagem principal de Psicose). Como Bates diz, ele não recebe muitos hóspedes em seu motel desde que redirecionaram o tráfego de automóveis para a nova auto-estrada. A sensação de isolamento e mistério que permeia a pintura de Hopper encontra eco na atmosfera do filme, onde a casa se torna um símbolo do terror psicológico que define a trama.
Cena do filme Psicose, 1960, dirigido por Alfred Hitchcock.
Em 1930, o colecionador Stephen C. Clark doou essa pintura ao MoMA em Nova York, onde ainda está hoje. E se você quiser visitar o cenário da casa do filme, ele ainda está no Universal Studios, em Hollywood.
Profondo Rosso — Os Falcões da Noite
Edward Hopper, Os Falcões da Noite, 1942, Art Institute of Chicago, Chicago, IL, EUA.
Cenas do filme Profondo Rosso, 1975, dirigido por Dario Argento.
Os Falcões da Noite (1942) é talvez a obra mais conhecida de Hopper. A cena noturna de Chicago captura a falta de comunicação e a solidão dos personagens. A falta de interação entre os personagens reflete uma profunda sensação de desconexão, característica da vida moderna. Os clientes da Phillies parecem estar perdidos em seus pensamentos, como se nem soubessem que há outras pessoas ao redor deles. Essa pintura foi analisada, modificada e pensada inúmeras vezes. Além disso, alguns diretores a recriaram como cenário para seus filmes. Por exemplo, no filme mais famoso de Dario Argento, Profondo Rosso (1975), o bar de Chicago, Phillies, se torna o Blue Bar em uma cidade imaginária italiana entre Roma e Turim. Dario Argento colocou o Blue Bar em Turim, na Praça CLN, e fez dele um local-chave para o filme, reforçando a ideia de que o espaço físico pode intensificar o isolamento psicológico dos personagens.
Janela Indiscreta — Janelas da Noite e Quarto em Nova York
Edward Hopper, Janelas na Noite, 1928, Museu de Arte Moderna, Nova York, NY, EUA.
Cena do filme Janela Indiscreta, 1954, dirigido por Alfred Hitchcock.
Cena do filme Janela Indiscreta, 1954, dirigido por Alfred Hitchcock.
Alfred Hitchcock foi grande admirador de Hopper. Em Janela Indiscreta, que foi exibido no Festival de Cinema de Veneza em 1954, há muitas referências ao pintor, que muitas vezes retratava pessoas vistas através de janelas. Assim como Hopper, Jeff, um fotógrafo confinado a uma cadeira de rodas, observa seus vizinhos em seus apartamentos: uma dançarina, uma mulher solitária chamada de Miss Lonelyhearts, um pianista, um escultor e alguns casais, incluindo o casal que ele deveria ter deixado em paz. Este filme e as pinturas de Hopper também compartilham temas de isolamento e incomunicabilidade de personagens envoltos em seus próprios mundos, vistos à distância, sugerindo que, mesmo em ambientes compartilhados, as pessoas permanecem isoladas umas das outras. Tanto o pintor quanto Jeff estão sozinhos observando pessoas solitárias e silenciosas, sem poder se comunicar com elas.
Edward Hopper, Janelas da Noite, 1928, Museu de Arte Moderna, Nova York, NY, EUA.
Cena do filme Janela Indiscreta, 1954, dirigido por Alfred Hitchcock.
Shirley: Visions of Reality
Se você também ama Hopper, deve assistir ao filme Shirley: Visions of Reality,(2013) de Gustav Deutsch. Ele conta a vida de uma atriz entre 1931 e 1963, mas, mais importante, é composto por 13 cenas e cada uma delas representa uma pintura de Hopper.
Pôster do filme Shirley: Visão da Realidade, 2013, dirigido por Gustav Deutsch.
M.C. Escher: Mestre das Realidades Impossíveis
Enquanto artistas como Hopper buscavam representar a realidade ao seu redor, M.C. Escher buscava desafiá-la. Em suas xilogravuras, litografias e mezzotints, Escher explorou realidades paradoxais, buscando decompor, analisar ou revogar as leis da ciência. A simetria e geometria impossíveis de suas obras exploram conceitos matemáticos e científicos, desafiam nossa compreensão de espaço, tempo e gravidade.
Inception & Harry Potter e a Pedra Filosofal — Ascending and Descending
Trecho do filme A Origem, 2010, dirigido por Christopher Nolan.
Quando se trata de discutir tempo, espaço e gravidade no cinema, o nome do diretor Christopher Nolan sempre aparece. Ele torçe e retorcer de tal maneira os conceitos estruturais da nossa realidade que seus filmes precisam ser vistos duas ou três vezes para serem compreendidos (mesmo?).
Em Inception (2010), Arthur (Joseph Gordon-Levitt) ensina Ariadne (Elliot Page) como criar labirintos mentais indestrutíveis , construindo estruturas infinitas muito semelhantes à arte de Escher. Em uma cena crucial, eles percorrem uma escada infinita, uma clara homenagem a Ascending and Descending (1960) de Escher, que usa proporções impossíveis para criar paradoxos visuais.
M. C. Escher, Ascendendo e Descendendo, 1960, Galeria Nacional do Canadá, Ottawa, Canadá. Detalhe.
Se você assistiu os filmes de Harry Potter, essa obra de Escher pode te lembrar uma fala de Percy Weasley no primeiro filme. Ele avisa aos novos alunos: “Prestem atenção nas escadas. Elas gostam de mudar.”
Cena do filme Harry Potter e a Pedra Filosofal, 2001, baseado no romance de J. K. Rowling, dirigido por Chris Columbus.
Labirinto - Relativity
O filme Labirinto (1986) é uma fantasia musical , estrelado por David Bowie como o Rei dos Duendes. Em determinado momento os personagens se encontram em uma sala inspirada na famosa obra Relativity (1953) de Escher. Uma das obras mais populares de Escher, retrata um mundo três diferentes fontes gravitacionais, onde os habitantes caminham por escadas que levam em todas as direções. O cenário surreal do filme espelha a manipulação espacial de Escher, contribuindo para a experiência desorientadora do próprio labirinto.
M. C. Escher, Relatividade, 1953, Museu de Arte Moderna, Nova York, NY, EUA.
Cena do filme Labirinto, 1986, dirigido por Jim Henson.
Suspiria — Sky and Water e Belvedere
Suspiria (1977) de Dario Argento, é uma obra-prima do horror, famosa por sua atmosfera assustadora e detalhamento artístico. Nesta inquietante história de uma academia de balé alemã com segredos sombrios, a influência de Escher é visível em toda parte. A rua onde a academia está localizada leva o nome do artista, Escherstraße, e as paredes da academia são adornadas com suas obras, incluindo Relativity (1953) e Sky and Water I (1938). Ambas as peças borram as linhas entre a realidade e o sobrenatural—assim como a narrativa perturbadora do filme.
Cena do filme Suspiria,1977, dirigido por Dario Argento.
M. C. Escher, Céu e Água I, 1938, Galeria Nacional do Canadá, Ottawa, Canadá.
Cena do filme Suspiria, 1977, dirigido por Dario Argento.
M. C. Escher, Belvedere, 1958.
A Bela e a Fera - Eye
Vamos terminar com uma referencia pouco conhecida. Se você olhar com cuidado, em A Bela e a Fera (1991), da Disney, há um momento breve, mas inquietante, durante a cena da morte de Gaston. Quando a câmera dá um zoom em seus olhos, os espectadores podem ver pequenos crânios refletidos em suas pupilas—um eco visual do mezzotint Eye (1946) de Escher, no qual um crânio humano é visto dentro da íris. Intencional ou não, o paralelo evoca os temas recorrentes de Escher sobre vida, morte e percepção.
Cena do filme A Bela e a Fera, 1991, dirigido por Gary Trousdale e Kirk Wise.
M. C. Escher, Olho, 1946, Galeria Nacional de Arte, Washington, DC, EUA.
Esses exemplos ilustram como o cinema e a pintura podem dialogar de maneiras profundas e surpreendentes, criando novas camadas de interpretação visual e narrativa.