Introdução
As representações de criaturas fantásticas nos mapas do Renascimento são muito mais do que meros elementos decorativos: testemunham como se compreendia o oceano e os terrores que ele inspirava. Esses mapas lançam luz sobre a relação simbólica entre a humanidade e o mar, revelando mudanças de percepção sobre esse elemento indomável da natureza. Uma vasta gama de monstros marinhos mitológicos surge nessas cartografias, do canto fatal das sereias à ameaça do Leviatã. Cada figura encerra narrativas que misturam experiências de exploradores com as crenças e temores dos que permaneciam em terra firme.
O Papel dos Mapas na Renascença
Rumold Mercator, Orbis Terrae Compendiosa Descriptio, 1587, St John’s College, Cambridge, Inglaterra.
Durante a Renascença, os mapas não serviam apenas para orientar navegadores. Muitos eram concebidos como objetos de arte, expostos em residências aristocráticas como demonstração de riqueza e prestígio. Entre a nobreza, colecionar ou encomendar mapas era uma forma de construir e exibir identidade social. Possuir um mapa significava afirmar o domínio, rela ou simbólico, sobre o território representado,
Assim, os mapas ganhavam elementos estéticos que iam muito além da geografia: apresentavam figuras humanas, embarcações, criaturas marinhas. Esses detalhes permitem que sejam analisados como objetos de história da arte, revelando o imaginário dos cartógrafos, dos mecenas e da sociedade da época.
Três grandes tipos de mapas predominavam: mapas náuticos, mapas-múndi e aqueles baseados na Geografia de Ptolomeu. Os náuticos serviam à navegação, enquanto os mapas-múndi eram voltados para colecionadores particulares. Para muitos, esses mapas constituíam a principal fonte de informação sobre o restante do mundo — incluindo as criaturas dos mares.
Percepções Renascentistas sobre a Vida Marinha
Theodore de Bry, Americae pars, nunc Virginia dixta primum Anglis, 1590, Library of Virginia Education, Richmond, E.U.A.
Durante as Grandes Navegações, o mar era visto como uma força caótica a ser dominada pelo homem. A elite ocidental buscava o controle de vastas extensões do globo, inclusive das chamadas “águas internacionais” — termo oriundo do inglês antigo heahflod, significando “águas profundas”, que designava regiões oceânicas fora de qualquer soberania territorial.
Embora a posse da terra estivesse em foco, o mar também era compreendido como espaço de conquista. Além das populações locais desconhecidas, os navegadores temiam as ameaças naturais das águas profundas. Tempestades, correntes traiçoeiras e desorientação compunham o cenário de perigo, ao qual se somava o medo constante de monstros marinhos.
Essas criaturas surgiam de tradições folclóricas e relatos bíblicos. Por vezes, animais reais como baleias eram confundidos com monstros. Cartógrafos aproveitavam essas histórias, transformando-as em ilustrações que adornavam os mapas. Os monstros também serviam como forma de dissuadir estrangeiros de navegar por certas regiões que o patrocinador do mapa desejava proteger.
Os monstros marinhos revelam, assim, não apenas o medo coletivo, mas também a visão de mundo e a imaginação renascentistas.
Sereias e a Percepção das Mulheres
Abraham Ortelius, Theatrum orbis terrarium,1570, Library of Congress, Washington, D.C., E.U.A.
As sereias, oriundas da mitologia grega, são retratadas como criaturas metade mulher, metade peixe, que seduzem marinheiros com seu canto para levá-los à morte. Na Odisseia de Homero, Ulisses salva sua tripulação tapando-lhes os ouvidos com cera e amarrando-se ao mastro do navio para resistir à tentação.
Esse mito era reforçado por interpretações cristãs em uma sociedade profundamente misógina. As sereias representavam o desvio moral, afastando os homens do caminho da virtude rumo ao desejo e à infidelidade. Em alguns mapas, aparecem segurando um peixe — símbolo cristão da alma humana — como se o tivessem roubado de Deus.
Consideradas uma ameaça real, as sereias eram incorporadas por cartógrafos, muitas vezes ao lado de navios, encenando seu canto fatal. Essas imagens refletem a visão predominante da mulher como inferior ao homem, propriedade do marido, destinada à castidade e à maternidade. Mulheres que fugiam desse ideal, em especial musicistas, eram vistas como perigosas por sua suposta capacidade de encantar e dominar os homens — uma associação direta com as sereias.
O Leviatã e a Visão Cristã
Olaus Magnus, Carta Marina, 1939, Library of Congress, Washington, D.C., E.U.A.
A figura do Leviatã tem origens mitológicas, mas foi amplamente moldada por interpretações do Antigo Testamento. Ali, é descrito como uma criatura feroz e indomável, que apenas Deus poderia derrotar. Seu corpo, segundo a narrativa, seria oferecido como alimento aos hebreus no deserto.
Associado ao mal e ao castigo dos pecadores, o Leviatã simbolizava o caos dos oceanos e a justiça divina. Navegadores temiam ser devorados por ele em meio às ondas. Acreditava-se que vivia no Mediterrâneo, razão pela qual aparece com frequência em mapas da região, por vezes em cenas de ataque a embarcações.
Descrito como tendo mais de 300 metros de comprimento e couraça impenetrável, era tido como invencível. Os cartógrafos exploravam esse temor coletivo ao representar sua ferocidade. Sua imagem revela os temores da época frente às travessias marítimas e aos perigos das profundezas.
Outros Monstros Marinhos
Thomas Edge, Map of Spitsbergen, 1626, Rijksmuseum, Amsterdã, Países Baixos.
Diversas outras criaturas também habitam os mapas. Os pristers, semelhantes a serpentes marinhas, eram descritos como cobertos de espinhos e com mais de 60 metros de comprimento, segundo Olaus Magnus. Também havia figuras que combinavam elementos de animais terrestres com traços marinhos, como vacas-marinhas com caudas de peixe.
Algumas criaturas derivavam de exageros de animais reais, como lulas e lagostas gigantes. Animais existentes, como morsas e narvais, também figuravam nas cartografias. Lendas como a da "Ilha Baleia", atribuída a Alexandre, o Grande, também influenciaram os mapas: marinheiros desembarcam em uma ilha, fazem uma fogueira, e só então percebem que estão sobre um imenso cetáceo, que mergulha com eles rumo à morte.
O Declínio das Criaturas Fantásticas
Gerardus Mercator, Nova et Aucta Orbis Terrae Descrirptio ad Usum Navigantium Emendate Accommodata, 1569, St John’s College, Cambridge, Inglaterra.
As criaturas marinhas presentes nos mapas do Renascimento revelam um rico panorama do imaginário coletivo, especialmente entre os navegadores. No contexto da Era das Navegações, o temor do desconhecido era intensificado pela tradição mitológica e religiosa.
Esses monstros representavam ameaças concretas: afundavam navios, devoravam marinheiros ou, como no caso das sereias, levavam homens à perdição. Ao mesmo tempo, expressavam ansiedades sociais, como o papel da mulher e a punição divina aos pecadores.
Ao fim da Renascença, os mapas passaram a retratar os seres marinhos com maior realismo. Assim, os monstros lendários cederam espaço a representações mais naturalistas — e com eles desapareceram as fábulas que povoaram os mares por tantos séculos.