Lorenzo Garbieri, Circe, c. 1615-1620.
Introdução
Circe é uma figura singular na mitologia grega. Reverenciada e temida, sua fama atravessou os séculos, conquistando espaço na literatura, na arte e na cultura popular. Filha de Helios, o Titã do Sol, e de Perse, a Oceânide, ou, em algumas versões, da própria deusa Hécate, Circe é famosa por seus vastos conhecimentos em magia, ervas e poções, uma figura poderosa e complexa.
Sua história sobreviveu em diferentes fontes literárias e culturais: Circe aparece em muitos dos mais importantes textos gregos antigos que chegaram até nós, como a Odisseia de Homero, a Teogonia de Hesíodo, Descrição da Grécia de Pausânias, Geografia de Strabo e A Biblioteca da História de Diodorus Siculus. Ela também é mencionadapor autores romanos, como Virgílio, Cícero, Ovídio, Hyginus, Valerius Flaccus, Statius e Porpetius.
A seguir, examinaremos como Homero, Ovidio e contemporaneamente, Madeline Miller, retrataram Circe, analisando os principais elementos de suas narrativas.
Circe na Odisseia de Homero
A versão mais conhecida da história Circe está no célebre poema épico de Homero, a Odisseia. Vivendo na ilha de Ea, Circe é retratada como uma feiticeira de grande beleza e mistério, uma mulher de cabelos trançados, voz doce, hábil no tecer e dona de grandes poderes, sempre cercada por lobos e leões domesticados. Odisseu a visita enquanto tenta retornar para casa da Guerra de Troia. Em sua primeira interação com os marinheiros de Odisseu, Circe os atrai para um banquete e, com o uso de uma poção mágica, transforma-os em porcos.
Odisseu, com a ajuda de Hermes e protegido por uma planta mágica, consegue resistir às artes de Circe. Confrontada, ela não apenas reverte a transformação de seus companheiros, mas também acolhe Odisseu e sua tripulação, que permanecem em sua ilha por um ano. Durante esse período, Circe auxilia Odisseu com conselhos valiosos para sua jornada. Apesar de sua imensa capacidade mágica, Homero a retrata como subjugada pela astúcia e masculinidade de Odisseu.
Circe em Metamorfoses de Ovidio
Em Metamorfoses, Ovidio apresenta uma Circe diferente, mais sombria e vingativa. A narrativa destaca sua paixão não correspondida por Glauco, um deus do mar que pede sua ajuda para conquistar o amor de Scylla. Rejeitada por Glauco, Circe canaliza sua frustração contra Scylla, envenenando as águas onde ela se banhava e transformando-a em um terrível monstro marinho.
Nessa versão, Circe é retratada como uma deusa poderosa, mas consumida por suas emoções. Seu poder é destacado, assim como sua habilidade em manipular ervas e feitiços. Contudo, a crueldade de suas ações e sua incapacidade de lidar com a rejeição reforçam uma visão de Circe como uma figura trágica e perigosa.
Circe em Circe de Madeleine Miller
A adaptação contemporânea de Madeleine Miller reinventa a história de Circe, narrando-a a partir de sua própria perspectiva. Nesse romance, Circe é apresentada como uma figura complexa, que enfrenta rejeições e humilhações por parte de deuses e mortais. Em vez de ser definida apenas por seus poderes ou seus relacionamentos, Circe é humanizada, revelando sentimentos de solidão, culpa e resiliência.
A transformação de Scylla, por exemplo, é contada sob uma nova ótica. Embora o ato permaneça egoísta, é moldado pelas experiências de rejeição e sofrimento de Circe. A relação com Odisseu também é reinterpretada: em vez de ser subjugada por ele, Circe escolhe acolhê-lo, mostrando uma abordagem mais igualitária e autônoma. A narrativa de Miller é permeada por críticas às visões patriarcais das versões clássicas, oferecendo à personagem um protagonismo que lhe havia sido negado anteriormente.
As versões de Homero, Ovidio e Madeleine Miller sobre Circe revelam diferentes facetas da personagem, de feiticeira manipuladora a uma figura profundamente humana e multifacetada. Enquanto Homero a apresenta como um obstáculo a ser superado pelo herói, Ovidio a retrata como uma deusa vingativa, e Miller oferece uma visão empática e contemporânea de sua história.
Essa evolução reflete não apenas as mudanças na percepção cultural ao longo dos séculos, mas também a própria capacidade do mito de Circe de se adaptar e ressoar em diferentes contextos.
Representações do Mito de Circe na Arte
Circe e um dos homen de Odisseu transformado, ânfora anteniense, , c. sec. V. A.E.C., Staatliche Kunstammlungen Dresden.
Circe transformando os homens de Odisseu em porcos é tema que atraente tanto no mundo antigo quanto no moderno. Nas representações clássicas, é comum que os homens sejam retratados com cabeças de animais e corpos humanos (embora em Homero sejam descritos como porcos). Essa forma híbrida ajuda o artista a evocar o homem preso dentro do animal, destacando a monstruosidade do feitiço de Circe.
Wright Barker, Circe, 1889.
Essa obra impressionante retrata uma Circe poderosa, cercada por animais realistas. Papoulas estão espalhadas nos degraus de mármore, que, à primeira vista, parecem sangue. Artistas do Renascimento em diante quase sempre representaram Circe como uma figura romântica clássica, do tipo pré-rafaelita, com pele incrivelmente branca e, frequentemente, cabelos avermelhados, como se vê ao longo da história. Para esclarecer: essa não é uma aparência tradicional da antiguidade!
John Waterhouse, Circe Invidiosa (Circe Ciumenta), 1892.
Os artistas adoram o aspecto femme fatale de Circe, e esta é uma grande interpretação: raiva absolutamente concentrada no rosto de Circe. A cena ilustrada vem de Metamorfoses de Ovídio. O deus do mar Glauco se apaixonou pela ninfa Scylla mas não conseguiu que ela o amasse de volta. Ele recorre a Circe em busca de uma poção de amor, mas a feiticeira se apaixona por ele. Quando é rejeitada, Circe se vinga transformando Scylla no monstruoso ser de seis cabeças conhecido da Odisseia. Para efetuar a transformação, Circe vai até o local de banho favorito de Scylla e contamina a água com suas drogas, o momento capturado por Waterhouse. Também vale notar a incrível criatura parecida com um bagre sobre a qual ela está.
Angello Caroselli e Pseudo-Caroselli, c. 1630, O Reino da Feiticeira Circe, Ottocento Art Gallery.
Circe encarna a ansiedade masculina em relação ao poder feminino. Essa pintura leva essa ansiedade ao extremo: Circe não apenas transforma homens, mas espalha por sua ilha os restos sangrentos de seus corpos.
Julia Margaret Cameron, Circe, 1865. Metropolitan Museum of Art.
Este é um dos poucos retratos pré-contemporâneos de Circe criados por uma artista mulher. Aqui, não vemos a ameaça de Circe. Sua expressão é equilibrada, calma e enigmática. Talvez até um toque de tristeza em seus olhos.
Ilustração de uma edição alemã de De Mulieribus Claris, de Boccacio, impressa por Johannes Zainer, c. sec. XV coleção Literae Humaniores, Biblioteca da Universidade da Pennsylvania.
Mitos gregos vestidos no estilo completo de corte medieval. O homem inalterado é Odisseu (marcado com seu nome romano, Ulisses). O homem com cabeça de leão provavelmente é um dos leões domesticados de Circe. Os estudiosos debatem se os leões de estimação de Circe eram homens transformados ou apenas feras domesticadas.
Alessandro Allori, Circe e Odisseu, 1560.
Ao fundo, Hermes aconselha um agitado Odisseu sobre como escapar dos feitiços de Circe. Em primeiro plano, Circe relaxa com sua varinha, animais e um bom livro.
Angelica Kauffmann, Ulisses e Circe, 1786.
Outra artista feminina. É difícil decifrar exatamente qual momento está sendo retratado. À primeira vista, uma representação incomum de uma Circe benevolente, que foca na intimidade fácil entre ela e Odisseu, e no conforto que ela acaba por oferecer. Mas ela segura sua varinha baixa na mão esquerda, como se quisesse escondê-la dele... então é difícil dizer.
Odisseu Perseguindo Circe, cálice, c. 440. A.E.C., Metropolitan Museum of Art.
Outra representação antiga de Circe captura o momento em que Odisseu vira o jogo contra ela, sacando sua espada. Para mim, a cena tem uma energia quase farsesca: os homens-transformados-em-porcos correndo ao redor, Odisseu perseguindo Circe, que foge, tendo acabado de descartar às pressas seu vinho envenenado e sua varinha.
Eneias Construi Um Túmulo Para sua Ama, Caieta, Caieta, e Deixa O Reino de Circe (Eneida VII), O Mestre da Eneida, c. 1530-35. Metropolitan Museum of Art.
Esta é uma ilustração de um episódio da Eneida, o poema épico de Virgílio que conta a história do herói troiano Eneias fugindo das ruínas de Troia para fundar uma nova civilização na Itália — o futuro Império Romano. No caminho para a Itália, ele deve navegar pela ilha de Circe, uma cena que Virgílio evoca com uma construção visceral digna de filme de terror: o cheiro do fogo de cedro de Circe, o som de seu canto enquanto tece em seu tear — sobreposto aos gritos de homens transformados presos por sua magia. Infelizmente, esta imagem não faz jus a Virgílio. Parece mais que Circe abriu um zoológico.
Dosso Dossi, Circe e Seus Amantes em uma Paisagem, c. 1525, National Gallery of Art, Washington D.C.
Esta pintura é inspirada nos mitos posteriores sobre Circe, que a retratam como perpetuamente sem sorte no amor, sempre se apaixonando por um homem que a rejeita, e depois se vingando. Em suas Metamorfoses, Ovídio conta uma versão típica: Circe se apaixona pelo herói Pico. Quando ele a rejeita, ela o transforma em um pica-pau. O título parece implicar que todos os animais que vemos aqui foram antigos amores, que Circe transformou em seu zoológico pessoal. Que agora ela está ensinando a ler?
Wilhelm Schubert van Ehrenberg, animais por Carl Borromäus Andreas Ruthart, Ulisses no Palácio de Circe, 1667, J. Paul Getty Museum.
Esses artistas levaram a atmosfera luxuriante e sedutora da história original de Circe a outro nível. Agora Circe vive em uma casa extravagante ao estilo de Versalhes, cercada por uma comitiva decadente e animais exóticos, incluindo um avestruz (!).
John Waterhouse, Circe Oferecendo a Taça a Odisseu,1891.
Outra interpretação de Waterhouse captura Circe no momento em que oferece a taça envenenada a Odisseu, que está refletido no espelho atrás dela. Circe convicta, Odisseu hesitante. Na história, sabemos que essa dinâmica de poder está prestes a se inverter. O feitiço de Circe falha, Odisseu saca sua espada, e Circe cede, ajoelhando-se aos pés dele. Mas Waterhouse se detém no momento do poder de Circe, capturando seu magnetismo e mistério imperiosos.
Bertram Mackennal, Circe, c.1893.
O molde original dessa estatueta tinha impressionantes 1,80 metros de altura. Sua composição elegante e minimalista foca em dois aspectos: o corpo feminino de Circe, desenhado de forma exuberante e nua, e seu poder. Mackennal nos apresenta uma Circe no meio de um feitiço, concentrada em seu trabalho. O alvo de seu feitiço é desconhecido. Odisseu, porcos, homens suplicantes, varinha mágica, poções — tudo é deixado de lado. Resta apenas Circe, no centro da cena. Exatamente onde ela deveria estar.