O Outeiro da Glória: História e Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro
Conheça a fascinante história da igreja e do morro que marcam a cidade desde o século XVI.
Introdução
O Outeiro da Glória, outrora chamado "Morro do Leripe" ou "Uruçumirim", era o local, descrito por Mem de Sá, onde se encontrava a "fortaleza de biroaçumirim, com muitos franceses e artilharia."
Conquistado pelos portugueses em 20 de janeiro de 1567, sob o comando do fundador da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, Estácio de Sá, é local dos mais importantes na historiografia carioca. Primeiro, porque foi aí com a vitória dos portugueses, que se firmou o domínio luso na cidade; depois, porque foi deste solo que saiu ferido mortalmente seu fundador.
A Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro uma das construções é religiosas mais registradas por artistas durante o século XIX, tanto nos desenhos e pinturas como nos relatos de viagem. Mesmo antes da chegada dos europeus, o outeiro já servia como referência aos índios tupinambás, primeiros ocupantes da região.
Nossa Senhora da Gloria
Situado num ponto estratégico, de onde se pode ver toda a baía de Guanabara e o centro da cidade, o morro da Glória foi um importante local de observação artística e militar. Há registros de que a pequena guarita da igreja, até hoje ao lado da torre, era o local de abrigo para a sentinela que vigiava a entrada da baía contra possíveis invasores. Na vista de Johann Moritz Rugendas, tomada a partir da igreja, conseguimos ver parte desta paisagem: ao fundo está a enseada da praia da Glória, a rua da Glória, o Aqueduto da Carioca e o Morro do Castelo.
Vue de Rio-Janeiro – prise près de l'Eglise de Notre-Dame da Gloire
A Igreja de Nossa Senhora da Gloria do Outeiro
Por sua posição privilegiada sobre a baía de Guanabara, a igreja da Glória é uma marca da paisagem carioca. Assim revelam os documentos do século XVIII em diante, nos quais a igreja é frequentemente retratada. A “Glória do Outeiro”, como também é conhecida, tem pelo menos uma representação musical na obra do compositor Francisco Mignone, na peça orquestral “Festa das Igrejas”, de 1940.
Ao fim do século XVII, apareceu no Rio de Janeiro um eremita chamado por Antônio Caminha, natural do Aveiro, Portugal. Caminha era também escultor. Ele ergueu ali uma pequena capela para abrigar a imagem de Nossa Senhora da Glória, por ele esculpida. Foi quando o outeiro tomou definitivamente o nome da Glória. Em torno de Caminha formou-se um círculo de devotos. Diz a lenda que ele ofereceu uma réplica da santa ao rei de Portugal, D. João V. Entretanto, o navio naufragou, mas a imagem, levada pelas ondas, apareceu em uma praia da cidade de Lagos, no Algarve, em Portugal, donde foi recolhida ao convento dos frades capuchos, em que se encontra até hoje na igreja de São Sebastião. A saga de Caminha permaneceu na memória do povo do Rio de Janeiro e foi imortalizada pelo escritor José de Alencar na novela “O Ermitão da Glória”, escrita no século XIX.
As terras onde Caminha havia construído sua capela primitiva pertenciam a Cláudio Gurgel do Amaral. Também devoto de Nossa Senhora da Glória, Gurgel do Amaral fez doação de sua propriedade à Irmandade para que fosse edificada uma ermida permanente e digna do culto da virgem. As terras com o nome de Chácara do Oriente, compreendendo o Outeiro, foram doadas à Nossa Senhora em escritura pública de 20 de junho de 1699, com a condição de ser edificada uma capela permanente, e que nela fossem sepultados o doador e seus descendentes. Pelo contexto da escritura depreende-se que em 1699 já havia uma Irmandade para cultuar Nossa Senhora da Glória, confraria que segundo o “Santuário Mariano” possuía, em 1714, “quantidade de dinheiro para dar princípio a uma nova e grande igreja de pedra e cal, porque a primeira que se fez foi de madeira e barro.” A Irmandade de Nossa Senhora da Glória foi canonicamente instituída a 10 de outubro de 1739, ano em que se concluiu a construção do templo, por ato provisional do Bispo do Rio de Janeiro, Frei Antonio de Guadalupe, em resposta a uma petição dos Irmãos.
Com o passar dos anos, as festas de Nossa Senhora da Glória, celebradas a 15 de agosto, tornaram-se das mais concorridas da cidade. Era uma festa a um tempo popular e aristocrática, pois era frequentada pela gente simples da cidade e pelos vice-reis e imperadores do Brasil. Foi com a transferência da corte para o Rio de Janeiro que a família imperial passou a frequentar a igreja. D. Maria da Glória, futura rainha de Portugal, foi conduzida para ser consagrada à virgem pelos braços do avô D. João VI. D. Pedro II e a imperatriz D. Teresa Cristina foram inscritos na Irmandade e eram assíduos às festas da padroeira. Os ofícios religiosos, a partir do Primeiro Reinado, passaram a ostentar grande pompa, mas não excluía o povo. As festas da Glória rivalizavam com as da Penha, mais ligadas às tradições populares portuguesas.
Inaugurada em 1739 com projeto do tenente-coronel português José Cardoso Ramalho, a igreja foi construída fora dos limites da cidade. Assim como o Mosteiro de São Bento, ela é responsável pelo início da urbanização da região onde foi instalada, que hoje compreende o bairro da Glória e o aterro do Flamengo. A devoção a Nossa Senhora da Glória surgiu no início do século XVII, alguns anos após a fundação da cidade, quando no ano de 1608, um certo Ayres colocou uma pequena imagem da Virgem numa gruta natural existente no morro.
Depois da vinda da família real ao Brasil, em 1808, o Outeiro da Glória ganhou ainda mais importância. Leopoldina encantou-se pela igreja e tornou-se devota da santa. A imperatriz fazia frequentes visitas ao templo e batizou sua primeira filha com d. Pedro I de Maria da Glória. Pedro II, também filho do casal, concedeu à irmandade da igreja o título de “imperial”. Desde então, todos os descendentes da família real já nascem membros da irmandade. O brasão dos Orleans e Bragança, inclusive, está entalhado no alto do arco-cruzeiro da igreja.
O desenho abaixo é do austríaco Franz Joseph Frühbeck, um dos integrantes da comitiva pessoal que acompanhou a chegada de Leopoldina ao Brasil em 1817. No registro, vemos que o mar chegava bem perto da igreja, situação que mudou drasticamente no século XX, depois da construção de aterros.
Kirch bei Rio Janeiro gernnant: Santa Gloria wo die....
Considerada hoje como um dos maiores patrimônios da arquitetura colonial e religiosa do Brasil, a Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro foi declarada Monumento Nacional em 1937 e, no ano seguinte, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O conjunto de azulejos portugueses encontrados dentro do templo foi produzido entre 1735 e 1745 e está presente na nave, na capela-mor, na sacristia, nos corredores e no coro alto da igreja. Inspiradas no Cântico dos cânticos, as mais de 8 mil peças compreendem um dos acervos de azulejos mais bem preservados do país.
Na litografia de Ernest Jaime, feita com base na fotografia de Victor Frond, vemos no pé do morro o antigo mercado da Glória. Construído em 1858 (e demolido em 1903 para dar espaço a um jardim), uma das primeiras intervenções arquitetônicas na paisagem local. Anos mais tarde, em 1922, o cenário também foi marcado pela construção do Hotel Glória, do arquiteto Joseph Gire, o mesmo que projetou o Copacabana Palace.
La Gloria - Rio-de-Janeiro
Nos anos 1960, durante a programação das festividades dos 400 anos do Rio de Janeiro, Lúcio Costa projetou rampas de acesso à igreja, intercaladas por terraços. O objetivo era frear a urbanização desordenada que impediria a visão da igreja da Glória. Hoje, a falta de poda das plantas da rampa acabou por interferir no projeto do arquiteto, e as copas das árvores impedem a vista de alguns pontos de observação.
Arte e Arquitetura
A igreja que hoje conhecemos começou a ser construída em 1714 e foi finalizada em 1739, quando a Irmandade foi consagrada canonicamente. Seu risco arquitetônico é atribuído ao tenente-coronel José Cardoso Ramalho, que combinou elementos arquitetônicos do passado luso às inovações do barroco italiano da primeira metade do século XVIII. A planta, que apresenta dois octógonos alongados, é uma gema rara da arquitetura religiosa brasileira. O sentido barroco do plano arquitetônico antecedeu às famosas igrejas do barroco mineiro. A igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro é única no Rio de Janeiro na utilização não aparente da pedra de cantaria na composição do espaço interno. A cantaria não serve apenas à fachada, mas à marcação das principais linhas, modenaturas, pilastras e arremates internos, conferindo uma certa leveza à rigidez volumétrica da arquitetura. As talhas dos altares, bem como das tribunas e do coro representam a fase de transição do estilo rococó para o neoclássico, posterior a construção da igreja.
Assim como a presença da cantaria no interior, os painéis de azulejos que recobrem a nave, o altar, a sacristia e o coro alto formam um elemento determinante na estrutura espacial da igreja. O conjunto de painéis figurativos em azul e branco trazem luz e leveza ao volume construído, gerando um fator de oposição ao sentido de verticalidade, trazendo o olhar ao campo imediato da visão humana. Empregados em poucas igrejas cariocas, os azulejos da igreja da Glória do Outeiro formam o conjunto mais importante existente no Rio de Janeiro e um dos mais destacados do Brasil.
Atribuídos ao mestre azulejeiro Valentim de Almeida, expoente do período do barroco da “grande produção joanina”, os azulejos da nave representam, provavelmente, cenas bíblicas do Cântico dos Cânticos. Na sacristia, predominam cenas de caça. Ao lado do risco arquitetônico, os painéis azulejares, apresentando extraordinária harmonia compositiva, conferem `a igreja da Glória do Outeiro uma grande relevância no contexto do patrimônio histórico e artístico brasileiro.