O Retorno do Manto Sagrado Tupinambá ao Brasil
História, Significado e as Disputas sobre sua Repatriação.
Introdução
Theodor de Bry, cerimonia indígena com uso do manto sagrado, séc. XVI, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
O Manto Tupinambá, uma peça cerimonial de importância histórica e espiritual inestimável, retornou ao Brasil após séculos de ausência. Este artefato, que remonta ao século XVII, representa a rica cultura e resistência do povo Tupinambá. No entanto, o retorno do manto, celebrado por muitos, trouxe à tona disputas entre o Museu Nacional e os próprios Tupinambás, que questionam a forma como a recepção foi conduzida e reivindicam que o manto seja devolvido diretamente ao seu povo. Vamos explorar essa complexa história de repatriação, suas origens, significados e os desdobramentos recentes.
O que é o Manto Tupinambá?
O Manto Tupinambá é uma vestimenta ritual feita com mais de 4 mil penas vermelhas de guará, costuradas sobre uma base de fibras vegetais. Utilizado em cerimônias de grande relevância, como funerais, assembleias e rituais antropofágicos, o manto era considerado sagrado, simbolizando a conexão entre o mundo físico e espiritual. Ao vesti-lo, o indivíduo era transformado em pássaro, uma figura divina e poderosa na cosmologia Tupinambá.
Apesar de a técnica de produção dos mantos ter se perdido por séculos, ela foi recentemente recuperada em um movimento encabeçado pela artista Célia Tupinambá, e as obras resultantes desse esforço já foram exibidas em grandes museus no Brasil e no mundo, inclusive na atual Bienal de Veneza. Para os Tupinambás, os mantos são objetos vivos, carregados de energia espiritual e memória ancestral. Eles são parte essencial da cultura, simbolizando a conexão do povo com seu território e com seus antepassados.
Origens e Significado Cultural
No século XVI, os Tupinambás eram uma das etnias mais influentes do litoral brasileiro, ocupando vastas áreas do território que hoje compreende os estados da Bahia, São Paulo e Ceará. A cultura Tupinambá era fortemente ligada ao território, e o manto simbolizava essa relação. Quem o vestia assumia uma forma espiritual elevada, tornando-se um ser sagrado nos rituais e cerimônias
Célia Tupinambá, Manto Tupinambá, 2006.
Você pode saber mais sobre a Célia Tupinambá e todo seu percursos até o manto aqui. O retorno do manto ao Brasil em 2023 marcou o resgate de uma herança cultural viva, mas também trouxe à tona questões sobre a quem cabe sua preservação.
A Saída do Brasil e o Longo Exílio
Durante o século XVII, o Manto Tupinambá que está de volta ao Brasil foi retirado de seu território e levado para a Europa. Não existem registros precisos de como e quando ele saiu do Brasil. Sabemos, com certeza, que em 1689, ele já fazia parte da coleção do Museu Nacional da Dinamarca, onde permaneceu por mais de 300 anos. Nesse período, o manto foi dado como perdido até que, no final do século XX, sua existência foi redescoberta. A partir daí, iniciou-se um longo processo de negociações para seu retorno ao Brasil.
Tupinambás: Um Povo Vivo e em Resistência
Contrariando as narrativas históricas que afirmavam a extinção dos Tupinambás, a etnia permaneceu viva e resistindo ao longo dos séculos. Apenas em 2001 a FUNAI reconheceu oficialmente a Terra Indígena Tupinambá de Olivença, localizada no sul da Bahia, o que representou um marco na preservação da memória e da identidade do povo Tupinambá. Atualmente, 46 mil pessoas habitam essa área, distribuídas em 23 aldeias, sob a liderança de 14 caciques. Os Tupinambá ainda lutam pela demarcação de seu território.
Para os Tupinambás, o retorno do manto significou não apenas o resgate de um objeto cultural, mas também uma reafirmação de sua existência e luta por reconhecimento.
A Repatriação: Um Processo de Disputas
Em julho de 2023, após anos negociações diplomáticas iniciadas em 2021, o Manto Tupinambá foi finalmente repatriado. Leia mais sobre o processo de repatriação aqui. O Nationalmuseet da Dinamarca, em colaboração com o governo brasileiro, enviou o artefato ao Museu Nacional, no Rio de Janeiro, onde passou por processos de descontaminação e conservação. No entanto, o retorno do manto gerou controvérsia entre os Tupinambás e o Museu Nacional.
Célia Tupinambá visita o manto sagrado no Museu Nacional.
Lideranças indígenas, como a cacica Maria Valdelice de Jesus (Jamopoty) e a artista e líder Célia Tupinambá, esperavam organizar rituais espirituais para recepcionar o manto. Eles reivindicaram que o manto fosse devolvido diretamente ao povo Tupinambá, considerando que sua importância transcende o valor histórico e museológico, sendo visto como um "ancião" sagrado. Segundo as tradições, a recepção da peça deveria seguir práticas espirituais específicas, para "assentar a energia" do manto em sua terra original.
No entanto, devido ao sigilo em torno da chegada do manto, os Tupinambás foram informados da sua chegada ao Brasil apenas após o transporte já ter sido concluído. Essa falta de comunicação gerou grande frustração, uma vez que os rituais espirituais que haviam sido planejados não puderam ser realizados. O Museu Nacional justificou a ausência de informações prévias como uma medida de segurança, visando evitar o roubo ou o desvio do artefato, uma vez que seu valor cultural e material é inestimável.
A Disputa pelo Destino do Manto: Museu ou Comunidade Indígena?
A chegada do manto ao Museu Nacional também reacendeu um debate mais amplo sobre o destino final de artefatos de importância espiritual e cultural para os povos indígenas. Enquanto o Museu Nacional se comprometeu a preservar e expor a peça até 2026, quando será concluída sua restauração após o incêndio de 2018, as lideranças Tupinambás argumentam que o manto deve ser devolvido ao povo, e não ficar em um museu.
Célia Tupinambá e Jamopoty, em nome do Conselho Indígena Tupinambá, defendem que o manto pertence ao território de Olivença, onde ele poderá cumprir sua função espiritual e cultural. Elas argumentam que a simples exposição do manto em uma vitrine desconsidera o valor simbólico que ele possui para o povo Tupinambá, transformando-o em objeto de exibição ao invés de um elemento vivo da cultura indígena.
Cerimonia de recepção do manto no Museu Nacional.
Por outro lado, o Museu Nacional, que se apresenta como um guardião da memória cultural do Brasil, sustenta que manter o manto em suas dependências permitirá maior acesso ao público e garantirá as condições adequadas para sua preservação. A instituição também alega estar em diálogo contínuo com os Tupinambás para garantir que o manto seja respeitado em sua sacralidade.
O Futuro do Manto: Entre o Museu e a Terra
A disputa em torno do destino do Manto Tupinambá não é apenas uma questão de preservação física, mas envolve também questões de soberania cultural e respeito às tradições indígenas. O retorno do manto simboliza uma vitória na luta pela repatriação de artefatos culturais, mas também levanta questões fundamentais sobre o papel dos museus e das instituições culturais na preservação das identidades dos povos originários.
Para os Tupinambás, o manto não é um objeto a ser exibido em um museu, mas um elemento vivo de sua cultura, que deve estar em conexão direta com seu povo e território. O Museu Nacional, por sua vez, busca preservar essa peça única em seu acervo, promovendo seu valor histórico e cultural ao público em geral.
O futuro do Manto Tupinambá ainda está em disputa. Enquanto ele permanece no Museu Nacional até a conclusão de suas obras de reforma, as lideranças indígenas continuarão a lutar por sua devolução total ao território de Olivença. Esse processo de repatriação se insere em um contexto maior de debates sobre o colonialismo, a preservação da memória e o direito dos povos originários à sua herança cultural.
Semana que vem vamos falar do manto sagrado como objeto estético e sobre as apropriações e interpretações que artistas ocidentais fizeram sobre ele.